A história da Gripe Espanhola em Ijuí, contada por arquivos da imprensa e documentos de 1918
Evitar aglomerações, o contato físico, adotar higiene rigorosa, especialmente lavar as mãos com frequência. Bares, fábricas, escolas, teatros, igrejas, todos fechados. Nada de festividades. Afastamento do trabalho como recomendação, mesmo poucos podendo se dar a este luxo. Já estamos acostumados a essas questões neste 2020, certo? E foi exatamente estes aspectos da vida social que também foram afetados em boa parte do mundo, incluindo o Brasil e, claro, Ijuí e região, nos idos de 1918, mais de cem anos atrás.
Uma das maiores epidemias, conhecida como a Gripe Espanhola, foi contada pela cobertura da imprensa ijuiense da época, além de documentos oficiais, hoje disponíveis em arquivos do Museu Antropológico Diretor Pestana, nos ajudando a entender um pouco desta história. Tratam-se de documentos da Intendência Municipal e edições do Jornal Correio Serrano.
O que foi a gripe espanhola?
A gripe espanhola ou influenza espanhola foi o nome dado a uma pandemia de vírus influenza que infectou aproximadamente um quarto da população mundial entre 1918 e 1919. Embora não tenha surgido na Espanha, mais provável é que tenha sido nos Estados Unidos. No Brasil teve este nome porque, em função da I Guerra Mundial, as grandes potências europeias impuseram censura na imprensa e a Espanha, fora do conflito, divulgou amplamente o surto em seu país. Peste de Dakar, Influenza Hespanhola, Febre Siberiana, Febre Chinesa e Febre Russa foram alguns nomes atribuídos a pandemia.
No Brasil o vírus chegou a bordo do navio Demerara, em setembro de 1918. A princípio nem imprensa e nem governantes deram muita importância, mas logo o número de infectados era tanto que não havia leitos, nem mesmo protocolo médico e medicamentos para tratar a doença.
Para tratar os doentes usavam alguns medicamentos para amenizar os sintomas, e o mais extraordinário, segundo os pesquisadores do MADP, foi a disseminação de remédios milagrosos e sem controle, como o quinino, que causava intoxicações, além da naftalina via nasal, que ocasionava severas hemorragias. O número de mortos rapidamente superou a capacidade dos cemitérios, não havia caixões e nem coveiros, que também ficaram doentes.
No Rio Grande do Sul o vírus chegou em 3 de outubro de 1918 e em 16 de outubro chega a Porto Alegre. Borges de Medeiros insistia que se o vírus chegasse no Estado seria de caráter benigno, dada as ótimas condições de higiene da população. As notícias chegavam à população ijuiense pelo Jornal Correio Serrano, que trazia mais informes oficiais e reprodução de notícias de outros veículos, especialmente.
Em geral as orientações das autoridades de saúde era evitar aglomerações, contato físico, higiene rigorosa, especialmente lavar as mãos com frequência. Foram fechados bares, fábricas, escolas, teatros, igrejas, festividades etc. Até afastamento do trabalho foi recomendado mas isso era um luxo que a população em geral não podia se dar.
Em Ijuí
Em Ijuí a primeira notícia sobre a gripe espanhola foi dada no Correio Serrano, em 04 de outubro de 1918, (ed. 79. Imagem 443). Desta data até dezembro, praticamente todas as edições traziam informações da pandemia, especialmente da capital federal, na época o Rio de Janeiro.
Poucas são as notícias específicas aqui de Ijuí. Em várias edições foram encontradas a seguinte recomendação:
“Para evitar a influenza todo indivíduo deve fugir das aglomerações principalmente à noite, não frequentar teatros, cinemas e quaisquer reuniões, doentes não devem ser visitados, e ao enterro dos mortos devem assistir somente as pessoas necessárias.”
Uma propaganda também era recorrente do Succo de Limão: “Está à venda na Pharmacia Rosa Lopez do succo de limão puro que é usado como refrigerante dos intestinos e preservativos da influenza espanhola, de acordo com notícias vindas do jornais do Rio. Além de ser um preservativo por excelência do grande mal que está às nossas portas é uma limonada deliciosa ao Paladar e próprio para a estação quente. Toma-se 2 ou 3 colheres de sopa por dia, cada colher em um copo d’água com açúcar. Para crianças colheres de chá, sendo que para essas é de grande proveito porque evita perturbações intestinais.”
As notícias em geral traziam os pareceres das autoridades, dizendo tratar-se de uma gripe benigna. A edição nº 85 de 25 de outubro de 2018, trouxe transcrita a famosa conferência do Dr. Carlos Seidl, Diretor Geral de Saúde Pública, na época a maior autoridade pública, em termos de saúde, na academia nacional de medicina. Ele defendia que, embora a enfermidade fosse contagiosa, era impossível adotar ações profiláticas gerais, como o isolamento, e que somente seria eficiente a adoção de ações de profilaxia individual, como a ingestão de sais de quinino e a rigorosa antissepsia da boca e nariz. Insistia que a gripe era benigna e não se justificava o terror que se apoderava das pessoas, alertando que isso diminuía a resistência orgânica e abria portas para a gripe.
Carlos Seidl sofreu severas críticas da própria classe médica e da imprensa. Por charges e notícias era atacado ferozmente e acusado por seu fraco empenho no combate à epidemia. A antagonismo entre a imprensa e diretoria de saúde chegou ao nível de Seidl pedir a censura, em vão, pois estava criando pânico na sociedade e ameaçavam a preservação da ordem pública. Carlos Seidl foi substituído por Carlos Chagas.
Edições
Na Edição 88 – Correio Serrano – 4 de novembro de 1918 uma pequena nota diz que diante da ameaça da influenza espanhola o Coronel Intendente Municipal tomou diversas providências preventivas, entre as quais a normatização de fossas sépticas. As demais providências não são descritas pelo jornal e não foram encontrados registros.
Já a edição 89 – Correio Serrano – de 08 de novembro de 1918 (capa e p.2 0482 e 0483) traz a íntegra de telegrama do Dr. Protásio Alves, Secretário do Interior, endereçado à Intendência Municipal de Ijuí, dando instruções sobre a profilaxia e o tratamento da influenza espanhola, visando a uniformidade de ação por parte das autoridades sanitárias do estado e do município.
E a edição 91 – Correios Serrano – 15 de novembro de 1918, na coluna Da Serra – destaque que embora o feriado da Proclamação da República fosse o mais importante do país, em virtude da pandemia não seria festejado como nos anos anteriores. Anunciava também que em função da situação reinante o ato de entrega do governo ao novo Presidente da República, Doutor Rodrigues Alves, realizar-se-ia em silêncio. Contudo, o que se sabe é que Rodrigues Alves contraiu a gripe espanhola e não conseguiu tomar posse, assumindo o seu vice, Delfim Moreira. Rodrigues Alves faleceu em janeiro e foram convocadas novas eleições. (nota: alguns historiadores contestam que Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola.)
A edição de número 93 do Correios Serrano, 22 de novembro de 1918, (imagem 500 e 501) noticia que foi instalado, no edifício do Grupo Escolar da Cidade (hoje Escola Ruizinho), um hospital para os enfermos atacados pela influenza e que uma comissão de senhoritas se encarregou de colher donativos para esse louvável fim.
Finalmente a edição 101 – Correios Serrano – 20 de dezembro de 1918 traz a notícia que estava quase extinta em Ijuí a influenza espanhola, que, apesar dos poucos casos de morte aqui verificados, tantas turbações ocasionou na vida familiar e pública. Que já estavam funcionando os estabelecimentos de divertimento, os cinemas e provavelmente o princípio do novo ano as aulas particulares também reabririam as suas portas.
Esta edição, juntamente com a edição 102, de 23 de dezembro de 1918, trouxe o relatório do Intendente Municipal, Cel. Antônio Soares de Barros, na íntegra, o qual passamos a destacar:
“Estado Sanitário – A gripe hespanhola, que tantos desastres ocasionou, não só no nosso paiz como em quase todo o mundo, aproximadamente há dous mezes apareceu neste município. Embora com caracter benigno, fez diversas victimas. Segundo os dados colhidos, até o presente faleceram em consequência desta moléstia: No primeiro districto (sede) 30: no Segundo (hoje Augusto Pestana) 22; e no Terceiro (hoje Ajuricaba), 6 pessoas.
Tomei diversas providencias ao meu alcance, afim de evitar males maiores. Forneci medicamentos e alimentação aos pobres. Contractei com os médicos João Eickhoff e Germano Kaufmann seus serviços profissionais para attenderem aos pobres durante a epidemia, no 1º Distrito (fora da Villa) e no 3º. Procurei evitar o mais possível as aglomerações de povo, no intuito de prevenir o contágio da peste. Tive apoio de toda a população, na piedosa tarefa de protecção aos necessitados, e como auxiliares destacaram-se as organizadoras do Hospital de Caridade, exmas senhoras d. Maria Prestes, Nancy Silva, Rachel Marques da Silva e senhorinhas Maria Amorim, Elvira Pons, Geny Salgado e Inesilla Prestes. Os médicos Drs. Ulrich Kulmann, HansSoldan, Carlos Lester e Germano Kaufmann, bem como o farmacêutico Sr. Alberto Abreu, foram incansáveis em soccorrer aos necessitados. Quase todos os médicos adoeceram, pelo contágio da peste ou por excesso de trabalho, pelo que merecem louvores e agradecimentos da população. O Sr. Major Joaquim Prestes Junior, comandante do 4º Regimento de Cavalaria, igualmente prestou relevante auxílio.
No 2º districto o sr. Eugenio Pereira. Escrivão districtal, também merece mensão especial pelo muito que fez, socorrendo aos pobres, não só com medicamentos, como prestando serviço de enfermeiro e até despendendo dinheiro seu.”
Ainda não posso informar da importância despendida para esse humanitário fim. Porém certo estou de que terei vossa aprovação e apoio.”
Observa-se que o Hospital de Caridade a que se refere o Cel. Dico é o que foi criado no grupo escolar e não o atual HCI, que foi fundado em 1935.
Por fim, o MADP salienta que faleceram 58 pessoas (os números podem ser maiores) num universo de aproximadamente 30.000 habitantes. Trata-se de uma estimativa considerando que o censo de 1914 indicava 25.325 hab. E o de 1920 31.636 hab. E o número de 58 pessoas vitimadas pela gripe espanhola.
A galeria a seguir, exibe a reprodução das edições do Jornal Correio Serrano e o Relatório do Intendente Municipal, Cel. Antônio Soares de Barros sobre a gripe espanhola em 1918. Os documentos originais são de custódia do Museu Antropológico Diretor Pestana através de doação, portanto, ao fazer uso das fontes citar como referências: Acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana/Correio Serrano, edição 79, 80, 82, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 101; Acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana/AI.Administração Municipal/Prefeitura Municipal de Ijuí, documento AI 1.2 P120 d47 p1-2.